Possíveis repercussões penais da Lei 13.506/2017

Por Roberta de Lima e Silva e Maíra Salomi

Desde 13 de novembro do ano passado, vigora em nosso ordenamento jurídico a Lei 13.506, esta que, em vista de dispor acerca do processo administrativo sancionador nas esferas de atuação do Banco Central do Brasil e da Comissão de Valores Mobiliários, acabou por promover significativas alterações na Lei de Mercado de Capitais, bem como na Lei Crimes Financeiros.

Isto porque o referido diploma legal conferiu nova redação aos artigos 27-C, 27-D e 27-E, todos da Lei 6.385/76, tal como ao artigo 17 da Lei 7.492/86.

Dentre as alterações promovidas, que passaram a valer no dia de sua publicação, modificou-se o crime de manipulação de mercado, previsto no artigo 27-C da Lei 6.385/76, tornando ilícita a conduta do agente que “realizar operações simuladas ou executar outras manobras fraudulentas destinadas a elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário, com o fim de obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros”, impondo-lhe as penas de “reclusão, de 1 (um) a 8 (oito) anos, e multa de até 3 (três) vezes o montante da vantagem ilícita obtida em decorrência do crime”.

Logo a partir dessa primeira mudança, é notável a surpreendente postura do legislador no sentido de ampliar e estender a interpretação de tipos penais na seara econômica, permitindo o enquadramento de diversas condutas como ilícito criminal antes tidas como regulares e aceitáveis no contexto de mercado. No caso específico, o legislador valeu-se de excluir elementos do tipo que delimitavam a incidência da norma incriminadora e impediam a sua desenfreada aplicação.

Com efeito, a redação originária do artigo 27-C exigia expressamente para a configuração do delito elemento subjetivo consistente na “finalidade de alterar artificialmente o regular funcionamento dos mercados de valores mobiliários em bolsa de valores, de mercadorias e de futuros, no mercado de balcão ou no mercado de balcão organizado”, expressão suprimida por completo no novo tipo penal.

Substituindo tal finalidade, incluiu-se no novel texto legal a destinação específica para as operações simuladas e/ou manobras fraudulentas de “elevar, manter ou baixar a cotação, o preço ou o volume negociado de um valor mobiliário”, de maneira que, para a consumação do crime, faz-se mister apenas a demonstração causal entre a conduta do autor e a mudança de cotação, preço ou volume de valores mobiliários, sendo absolutamente dispensável a intenção do agente de alterar o regular funcionamento dos mercados. Funcionamento este, inclusive, que — vale lembrar — se visa preservar com a criminalização das condutas previstas nesta lei.

Foi mantida, entretanto, a exigência do dolo específico de “obter vantagem indevida ou lucro, para si ou para outrem, ou causar dano a terceiros”, de modo que a realização de operações simuladas ou fraudulentas sem essa finalidade acaba por ser considerado um irrelevante penal.

Assim agindo, logrou êxito o legislador em ampliar o espectro de incidência do crime de manipulação de mercado.

Com relação ao artigo 27-D, que disciplina o aclamado crime de insider trading, não foi outro o resultado das alterações promovidas pela Lei 13.506/17.

No mesmo sentido, empreendeu o legislador pátrio a conformação de novel tipo penal demasiadamente aberto, pois igualmente retirou da redação original a necessidade de o agente deter o dever de manter sob sigilo a informação relevante.

Atualmente, para a configuração do delito de insider trading, basta que o autor utilize “informação relevante de que tenha conhecimento, ainda não divulgada ao mercado, que seja capaz de propiciar, para si ou para outrem, vantagem indevida, mediante negociação, em nome próprio ou de terceiros, de valores mobiliários”.

O elemento que anteriormente conformava o caput do tipo penal de insider trading agora transformou-se em causa de aumento de pena, conforme prevê o parágrafo 2º do artigo 27-D da Lei de Mercado de Capitais. Mais uma vez, foram excluídos os limites de interpretação da norma incriminadora, permitindo a ampliação do enquadramento da conduta típica. O que antes alcançava diretamente apenas o dito insider primário, hoje possibilita a responsabilização penal também do insider secundário.

A inédita tipificação surgiu, contudo, no parágrafo 1º do dispositivo legal em comento que criminaliza a conduta daquele que “repassa informação sigilosa relativa a fato relevante a que tenha tido acesso em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários ou em razão de relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor”.

Ainda que referido dispositivo seja considerado norma penal em branco — isto é, norma cuja carga apresenta caráter determinadamente penal, porém sua definição típica prescinde de complementação normativa — e exija o repasse de informação sigilosa referente a fato relevante, tal qual definido pela Instrução Normativa CVM 358/02, práticas legítimas acabam por se subsumir ao tipo penal.

Em virtude dessa preocupante redação, mostram-se necessários cuidados por parte dos operadores do Direito, a fim de evitar a criminalização indevida de executivos de banco de investimentos, gestores, emissores de valores mobiliários, advogados e assessores financeiros atuantes no mercado e que estão englobados pela licitude decorrente do exercício regular de direito.

Infelizmente, o legislador não restringiu a incidência do dispositivo legal ao repasse de informações para fins ilícitos, isto é, com a finalidade específica de serem utilizadas por terceiro para propiciar vantagem indevida, para si ou para outrem. De igual modo, não se preocupou em condicionar a criminalização da transmissão dos dados sigilosos à efetiva ocorrência de negociação de valores mobiliários. Assim, o mero repasse das informações, por si só, já pode caracterizar o crime.

Vale mencionar, todavia, que a criminalização da conduta de quem transmite informação relevante não é totalmente irrestrita. Trata-se de crime próprio que somente pode ser praticado por aquele que tem acesso à informação “em razão de cargo ou posição que ocupe em emissor de valores mobiliários” ou em virtude de “relação comercial, profissional ou de confiança com o emissor”.

De todo modo, como é cediço, faz parte do dia a dia de inúmeros profissionais receber informações sigilosas acerca de transações que podem vir a ser consideradas fatos relevantes. E repassá-las é tarefa frequente para esses operadores, seja internamente, a membros de suas equipes, seja externamente, a outros profissionais envolvidos na operação. E invariavelmente esses indivíduos ou bem se encontram na equipe do emissor de valores mobiliários ou possuem com ele relação comercial, profissional ou de confiança.

Ante as alterações em comento, é preciso ter em mente os claros limites que — embora relegados — separam os profissionais que rotineiramente operam o repasse de informações ditas sigilosas e referentes a fatos relevantes adstritos à regularidade daqueles que verdadeiramente possuam finalidade delitiva em suas ações.

Em verdade, as práticas legislativas em matéria penal, quando empreendidas de forma demasiadamente descriteriosa, resultam em situação de frágeis contornos e exigem dos aplicadores da lei um cuidado ímpar, sob pena de criminalização indevida de profissionais atuantes no âmbito do mercado de capitais que exercem o seu mister absolutamente dentro da lei.

O artigo 27-E, por seu turno, trata do exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função e concede ao poder punitivo estatal a possibilidade de responsabilizar aquele operador que “exercer, ainda que a título gratuito, no mercado de valores mobiliários, a atividade de administrador de carteira, agente autônomo de investimento, auditor independente, analista de valores mobiliários, agente fiduciário ou qualquer outro cargo, profissão, atividade ou função, sem estar, para esse fim, autorizado ou registrado na autoridade administrativa competente, quando exigido por lei ou regulamento”.

Para além da alteração do núcleo do tipo de “atuar” para “exercer”, entendeu por bem o legislador excluir o elemento objetivo “como instituição integrante do sistema de distribuição”. Muito embora o projeto de lei não traga justificativa para essa exclusão, parece ter sido extirpada conduta inócua que, em vista das exigências para responsabilização penal da pessoa jurídica à luz da Carta Magna, impedia a subsunção de atos praticados por pessoa física a esse tipo penal específico.

Por fim, na contramão das alterações impostas, o crime de empréstimo vedado ganhou novos contornos, merecendo o legislador, neste ponto, colher louros, uma vez que passou a exigir para a configuração do delito que a operação de crédito, além de ser proibida em razão das contrapartes envolvidas, seja incompatível com as condições de mercado.

Até o ascenso da Lei 13.506/17, satisfazia à consumação do delito previsto no artigo 17 da Lei 7.492/86, classificado pela doutrina como crime formal — por alguns sendo considerado até mesmo como crime de mera conduta — [1], a realização de empréstimo ou adiantamento entre as pessoas mencionadas no caput do referido artigo e os indivíduos mencionados no artigo 25 da Lei de Crimes Financeiros. Era, portanto, de todo dispensável a análise das circunstâncias da operação financeira e de suas consequências.

No mesmo diapasão seguiu a construção jurisprudencial que, diante da anterior redação legislativa, consolidou entendimento no sentido de que o crime em apreço, em verdade, “se conforma com a mera conduta do agente, isto é, se aperfeiçoa com o simples empréstimo realizado por instituição financeira a empresa coligada do mesmo grupo econômico”[2].

Percebe-se que as cortes pátrias ignoravam, inclusive, posicionamento do Banco Central do Brasil no tocante à regularidade e à legalidade das operações realizadas perante o mercado nos casos concretos, alegando independência das esferas administrativa e criminal. Sustentava-se o argumento segundo o qual a norma penal nada previa quanto à compatibilidade das transações com o mercado, visando tutelar abstratamente a ordem econômica financeira, de modo que era irrelevante a inexistência de dano potencial ou efetivo.

O novel dispositivo, de maneira mais sintética, criminaliza a conduta de “tomar ou receber crédito, na qualidade de qualquer das pessoas mencionadas no art. 25, ou deferir operações de crédito vedadas, observado o disposto no art. 34 da Lei no 4.595, de 31 de dezembro de 1964”.

A referência expressa à Lei Bancária confere ao artigo 17 caráter de norma penal em branco, com seus limites definidos por uma outra legislação, o que, para além de fortalecer a unicidade conceitual de operação de crédito vedada entre os âmbitos administrativo e penal, impede divagações interpretativas, trazendo maior segurança jurídica.

E, para fins penais, a atual redação dos subsistentes parágrafos 3º a 6º do artigo 34 da Lei Bancária passou a permitir operações de empréstimo entre partes relacionadas às instituições financeiras, desde que realizadas em condições compatíveis com as de mercado, “inclusive quanto a limites, taxas de juros, carência, prazos, garantias requeridas e critérios para classificação de risco para fins de constituição de provisão para perdas prováveis e baixa como prejuízo, sem benefícios adicionais ou diferenciados comparativamente às operações deferidas aos demais clientes de mesmo perfil das respectivas instituições” (artigo 34, parágrafo 4º, inciso I).

A grande conquista legislativa reside, portanto, no fato de que a consumação do crime passa a exigir que a operação de crédito se dê entre partes vedadas e, ainda, que ocorra fora das condições normais de mercado.

À vista dessas ponderações, embora o objetivo primordial da Lei 13.506/17 declarado pelo legislador tenha sido o de “fortalecer a confiança e a credibilidade dos agentes do setor na atuação eficiente do regulador de mercado”[3], arrebatou no caminho uma série de contornos legais, em matéria penal, que, em verdade, ainda que timidamente, logravam proteger os profissionais atuantes nas esferas do mercado e cujo ofício envolve a manipulação de informações sigilosas, de fatos relevantes ou, ainda, a realização de transações de créditos. E estes nada mais fazem que o exercício pleno e regular de suas profissões, que não podem experimentar desproporcional processo de criminalização por uma irresponsabilidade legislativa — em sua maioria — sem qualquer equilíbrio na aplicação de reprimenda penal.

A legislação penal econômica vigente já não apresentava tipos penais suficientemente fechados, bem definidos e de fácil interpretação. Pelo contrário, a mais abalizada doutrina sempre criticou a amplitude interpretativa dos delitos econômicos e a exacerbada criminalização de condutas passíveis de repressão administrativa.

Já era tempo de se aproveitar a publicação de novas leis para buscar corrigir os ultrapassados dispositivos da Lei de Crimes Financeiros e da Lei de Mercado de Capitais, adequando-os ao contexto mercadológico moderno e às eficientes penalidades inerentes ao Direito Administrativo sancionador.

E para que não se olvide à discussão, “a defesa de um Direito Penal com tipos abertos, difusos, indeterminados, ou com normas penais dependentes de uma normatividade integradora (normas penais em branco), ou de um regramento judicial, são características de um Direito Penal autoritário e demasiadamente repressivo”[4] e violador do princípio constitucional da taxatividade.

Ao que parece, o Brasil caminha no sentido oposto da boa prática legislativa no tocante à criminalidade econômica, posto que aquela implica a edição de normas penais cada vez mais claras, precisas, cognoscíveis, delimitadoras da tipicidade e do subjetivismo dos operadores jurídicos e, sobretudo, a sua constante adaptação à rápida evolução dos regulamentos existentes na seara administrativa financeira e de valores mobiliários. Na prática, visualizamos a vigência de redação normativa cuja realização implica a conformação de tipos penais imprecisos, abrangentes e, por vezes, desprovidos de margem mínima de ação e intenção do agente em determinadas esferas, especialmente no cenário econômico-financeiro.

Quiçá a experiência trazida pela bem-sucedida modificação do tipo penal previsto no artigo 17 da Lei de Crimes Financeiros sirva de acertado exemplo às futuras alterações legislativas no campo do Direito Penal Econômico, para que, desta forma, possamos caminhar rumo ao devido combate às práticas nocivas ao desempenho da atividade financeira, sem sacrificar aqueles que atuam em estrita observância da legalidade.

[1] NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 2.
[2] REsp 466.168/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 17/12/2009, DJe 22/02/2010.
[3] Justificativa apresentada no bojo da propositura do Projeto de Lei 8.843/2017. Disponível em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1609736&filename=PL+8843/2017.
[4] CALLEGARI, André Luís. Legitimidade constitucional do Direito Penal Econômico: uma crítica aos tipos penais abertos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 851, p. 432-444, set. 2006.

Publicado originalmente em: https://www.conjur.com.br/2018-ago-10/opiniao-repercussoes-penais-lei-1350617

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