Por Romulo Monteiro Garzillo
A quarentena nos fez pessoas menos presentes e mais digitais. Por meses a fio, trocamos o cenário da vida externa pelo palco montado num teatro codificado pela poesia fria dos algoritmos. Trocamos abraços de “feliz aniversário” por áudios e chamadas de vídeo. Durante todos esses longos meses, nossa suspeita tornou-se um fato inquestionável: o de que somos absolutamente dependentes do universo digital.
Mas que dependência é essa que nos faz presos a aparelhos que parecem adivinhar nossos desejos? Que tipo de dependência é essa que nos encarcera com os tijolos de uma suposta liberdade? Será que nós, gente do século XXI, somos mais livres que antes?
O presente texto visa a aprofundar algumas dessas questões, sobretudo no que tange aos danos que a era digital vem causando na democracia contemporânea. Com efeito, elenquemos as seguintes perguntas: quais os impactos da era digital nas democracias contemporâneas? É possível mensurar ou racionalizar o modus operandi de tais danos? É possível afirmar que o colossal armazenamento de dados pessoais por grandes empresas ou até mesmo por governos, pode, de alguma forma, macular os valores centrais dos regimes democráticos liberais, conforme tradicionalmente os concebemos no Ocidente, em sua faceta liberal? Quais as consequências de todas essas questões para a tão jovem e já conturbada democracia brasileira?
Para responder a essas perguntas — cuja dificuldade reside no fato de que não temos qualquer distanciamento do objeto sob análise, uma vez que somos, o leitor e eu, partícipes da vida virtual – partiremos da definição de dois conceitos antagônicos: os conceitos de democracia e de autocracia (ou autoritarismo). O aspecto antagônico desses dois conceitos pode ser percebido da própria etimologia de ambos os termos. Assim, enquanto a democracia (demos = povo; kratia = poder) designa a participação popular nas decisões políticas, a autocracia (autos = por si próprio; kratia = poder) é o regime em que o poder político está disposto nas mãos de uma única autoridade, que também pode ser um único partido, grupo, um órgão central ou um estrato político. Portanto, enquanto a democracia é o regime da descentralização do poder, a autocracia (ou o autoritarismo), como seu oposto conceitual, é o regime da concentração do poder político.
Se a concentração do poder político revela a natureza autoritária de um regime — principalmente quando esse poder não está submetido ao império da lei, senão o contrário — é evidente que a era digital aponta para uma precarização da democracia constitucional.
Ora, se o que vemos, dia após dia, é infinita e ilimitada captura, armazenamento e uso dos dados pessoais de todos aqueles que têm acesso à internet, é possível verificar que quem tem acesso a tais dados pessoais, tem, por outro lado, poder sobre essas pessoas. Ademais, a questão se agrava quando percebemos que as entidades que obtém, armazenam e utilizam estes dados — como o Estado ou gigantes empresas — estabelecem uma relação desproporcional e assimétrica com o público, cujos dados pessoais são manipulados sem um mínimo de consentimento de seus titulares.
O professor Bruno Bioni define dados pessoais como “qualquer tipo de informação que permita sua identificação, ainda que o vínculo entre o dado e um indivíduo não seja estabelecido de prontidão, mas de forma mediata ou indireta” [1]. Logo, o acesso, armazenamento e uso dessas informações, principalmente quando feitas sem consentimento e por portentosas entidades públicas ou privados, relevam há algo de podre no reino das democracias contemporâneas. E se olharmos tal fenômeno com a lupa da ciência política, não há como não interpretar que essa assimétrica e desproporcional relação de poder — que se impõe em praticamente todas as camadas, rincões e instantes de nossa existência — não seja um novo tipo de totalitarismo, cujo arbítrio há muito ultrapassou a esfera pública da polis e veio, silenciosamente, habitar e violar o núcleo privado de nossas almas .
É bem verdade — dirão os analistas mais cuidadosos — que regimes autoritários ou totalitários possuem características específicas, como a existência de um poder que se encontra — de maneira formal e declarada — acima das leis e da Constituição, invertendo a lógica do Estado de Direito, em que o político está submetido ao jurídico e não o contrário. Entretanto, como leciona o constitucionalista Pedro Serrano, o autoritarismo hodierno não mais se apresenta como nos regimes despóticos de outrora, em que há um claro rompimento institucional, decretado formalmente via um decreto, como um AI-5 [2]. Hoje em dia, diz o professor, vivemos na época do autoritarismo líquido, onde medidas de exceção penetram, de maneira camuflada, no interior de regimes democráticos, esvaziando fraudulentamente o conteúdo das normas constitucionais, o que pode muito bem ser feito tanto por entes públicos como privados [3].
Desse modo, diante da existência de uma nova forma de autoritarismo na contemporaneidade, entendemos que a era digital é marcada por práticas antidemocráticas, que podem ser operadas tanto pelo Estado, como por multinacionais poderosas, conforme brevemente abordaremos a seguir.
A primeira forma do autoritarismo digital é aquela realizada pelo Estado. O Estado é seu agente e, violando direitos e garantias fundamentais, captura, armazena e utiliza dados pessoais, sem consentimento e de maneira despótica. Aqui, portanto, estamos diante de um modus operandi clássico de regimes autoritários, em que o Estado atua para além de qualquer limite constitucional, violando e suspendendo direitos e garantias dos cidadãos. Mesmo que sem a sofisticação proporcionada pela era digital, é possível verificarmos inúmeros exemplos históricos em que ditaduras utilizavam dados pessoais para a perseguição de inimigos políticos. Como exemplos, podemos citar a atuação da KGB na URSS, da Gestapo no Terceiro Reich nazista ou do DOPS brasileiro, todos órgãos de polícia política empenhados em coletar, armazenar e utilizar dados pessoais para a perseguição e até mesmo extermínio de inimigos do governo.
Mas seria possível imaginar o que teria sido do século XX se Hitler tivesse em suas mãos uma tecnologia de coleta e organização de dados pessoais como o big data?
E sequer é preciso esforço para imaginar tamanho pesadelo, uma vez que essa realidade não é algo tão distante. É o que nos conta Xiao Qiang, pesquisador chinês da University of California-Berkley’s School of Information sobre o regime ditatorial da China. Em seus estudos sobre o que ele chama de Estado de vigilância, Xiao Qiang descreve a mineração de dados pessoais ultrassensíveis dos cidadãos da República Popular da China — coletados via leitura facial, identificação de voz, armazenamento de material genético e por um Sistema de Crédito Social que colhe informações sensíveis dos indivíduos em seu cotidiano — são utilizado na perseguição de inimigos [4].
Doutro lado, na esteira de regimes de livre mercado, temos a manifestação privada do autoritarismo digital, como apresentado com excelência pelo documentário “Dilema das Redes”, da Netflix, que ganhou fama recentemente. Dentre as cientistas que aparecem no documentário, está a professora da Harvard Business School Shoshana Zuboff cuja obra é dedicada ao que ela denomina de “era do capitalismo de vigilância”. Segundo a autora, o “capitalismo de vigilância” pode ser definido como uma nova ordem econômica em que a produção de bens e serviços está subordinada à nova arquitetura global de modificação do comportamento dos indivíduos, via uma smart publicidade invasiva. Trata-se, pois, de uma nova forma de capitalismo em que o mercado se apresenta como ameaça à natureza da pessoa humana e de seus direitos mais caros, na medida em que visa impor uma ordem coletiva pautada no conhecimento e domínio da espontaneidade, núcleo essencial da liberdade individual [5].
Nessa nova ordem, as informações colhidas dos indivíduos, a partir de aplicativos manuseados de maneira viciosa e contumaz, tornam-se a fonte do superávit de empresas, transformando a atenção dispendida das pessoas diariamente na internet em matéria-prima para a otimização de seus lucros e resultados.
Embora tenhamos apresentado separadamente a esfera estatal e privada do autoritarismo digital, fato é que há a possibilidade de sua manifestação híbrida, em que Estados e empresas se unem, partilhando dados pessoais, com uma finalidade comum. É o que ocorreu, por exemplo, no famigerado escândalo da Cambridge Analytica, empresa privada que minerava e analisava dados sensíveis, utilizados, posteriormente, para influenciar a vitória presidencial de Donald Trump em 2016 e o Brexit [6]. Vê-se, pois, a proximidade desses temas com a explosão das chamadas fake news, direcionadas a dedo para influenciar politicamente a população, esvaziando sua autonomia de pensar com liberdade.
No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que acaba de entrar em vigor, é uma lei de suma importância na efetivação do direito fundamental à proteção de dados, muito embora na União Europeia essa proteção legal já exista há pelo menos 25 anos (Diretiva 95/46/EC). Em que pese a LGPD tenha demorado mais de dois anos para entrar em vigor, trata-se de lei vocacionada a mitigar a assimetria de poder e informação entre os agentes que controlam os dados e seus respectivos titulares. Em que pesem os diversos avanços, como a possibilidade de proteção de dados com a participação do Ministério Público via ações coletivas, fato é que essa legislação é muito recente, carecendo ainda de manifestações do Supremo Tribunal Federal que possam adequá-la, cada vez mais, ao arcabouço de direitos e garantias fundamentais previstos na Carta da República. Nesse sentido, aguardamos eventual manifestação tanto da doutrina como da Suprema Corte no que tange ao artigo 4º, inciso III, que estabelece que a LGPD “não se aplica ao tratamento de dados pessoais (…) realizado para fins exclusivos de a) segurança pública; b) defesa nacional; c) segurança do Estado; ou d) atividades de investigação e repressão de infrações penais”. Entendemos que essa norma prevê a suspensão do direito fundamental à proteção de dados em hipóteses um tanto quanto difusas, abstratas e muito próximas de temas políticos sensíveis, como é o caso da “defesa nacional” ou a “segurança do Estado”. De todo o modo, é importante que os juristas do país, bem como os órgãos públicos, estejam atentos às possíveis interpretações dessa nova lei, a fim de que eventuais fissuras sejam sanadas pela ciência e pela jurisprudência.
Com efeito, é necessário afirmar os inúmeros benefícios da internet, preciosa ferramenta que nos possibilita avanços em diversas áreas da vida humana, entre as quais encontra-se o próprio aperfeiçoamento do regime democrático, com maior transparência e participação popular das discussões políticas. Entretanto, é sempre necessário vigiar aqueles que nos vigiam, submetendo poderes assimétricos ao império da lei, fazendo garantir o consentimento dos indivíduos e a consequente efetivação dos direitos e garantias fundamentais da Constituição. Se a internet criou um Leviatã, é necessário amarrá-lo com as correntes do Estado de Direito. É necessário, como diria Ronald Dworkin, levar os direitos a sério.
[1] BIONI, Bruno. Xeque-Mate: o tripé de proteção de dados pessoais no xadrez das iniciativas legislativas no Brasil, 2015. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/328266374_Xeque-Mate_o_tripe_de_protecao_de_dados_pessoais_no_xadrez_das_iniciativas_legislativas_no_Brasil/citation/download.
[2] SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo e golpes na América Latina: breve ensaio sobre jurisdição e exceção. 2ª ed. São Paulo: Alameda, 2016, no prelo.
[3] Sobre o pensamento de Pedro Serrano, ver GARZILLO, Rômulo Monteiro. Pedro Serrano e as medidas de exceção na modernidade periférica: sistematização dos elementos conceituais, in Democracia em crise. São Paulo: Autonomia Literária, 2019.
[4] QIANG, Xiao. The Road to Digital Unfreedom: President Xi’s Surveillance State, in Journal of Democracy, vol. 30 no. 1, 2019, p. 53-67. Project MUSE, Disponível em: https://muse.jhu.edu/article/713722.
[5] Sobre a Cambridge Analytica, ver matéria do Estadão “Tudo sobre a Cambridge Analytica”, disponível em: https://tudo-sobre.estadao.com.br/cambridge-analytica.[6] ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance capitalismo: The fight for a human future at the new frontier of power. New York: Public Affairs, 2019.