Por Roberta de Lima e Silva, Diana Bittencourt e João Marcos Buch
A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus alterou substancialmente o mundo como o conhecíamos. O distanciamento social passou a ser a regra e o contato físico a exceção; determinações de quarentena revelaram-se medidas imperiosas para impedir, ou ao menos tardar, o temido colapso do sistema de saúde.
Dessa forma, se é a quarentena o único método seguro, até hoje, de refrear a transmissão do novo coronavírus, a relevante questão de ordem pública que se levanta é: quais seriam as consequências desta letal pandemia para a ampla população carcerária que se encontra recolhida em unidades prisionais e Centros de Detenção Provisória superlotados, de inquestionável ambiente insalubre e desprovidos de condições mínimas de higiene, conforme preceituado pelo Ministério da Saúde e pela OMS?
Consiste fato notório que o Supremo Tribunal Federal, nos autos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347, determinou que as características inerentes ao nosso sistema penitenciário conformam verdadeiro Estado de Coisas Inconstitucional.
Aliás, na oportunidade do referido julgamento consignou o ministro Marco Aurélio, responsável pela relatoria do feito, que “os presídios e delegacias não oferecem, além de espaço, condições salubres mínimas. Segundo relatórios do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os presídios não possuem instalações adequadas à existência humana. Estruturas hidráulicas, sanitárias e elétricas precárias e celas imundas, sem iluminação e ventilação representam perigo constante e risco à saúde, ante a exposição a agentes causadores de infecções diversas”.
A par desse contexto e ante a latente preocupação advinda dessa conjuntura, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação nº 62/20 buscando adequar às peculiaridades do sistema prisional e socioeducativo os protocolos de identificação, notificação e tratamento ameaça viral.
Pelo direito de defesa à vida, o CNJ elencou uma série de medidas a serem adotadas por magistrados a fim de conter a proliferação da Covid-19 em cenários aptos à sua difusão.
A recomendação foi adotada por parte dos juízes e especialmente levou a Defensoria Pública e uma série de profissionais a arguirem a observação de seus termos, de modo que fossem reavalias as prisões provisórias, as concessões de saídas temporárias e aquelas referentes à antecipação do regime fechado e semiaberto, a possibilidade de concessão da prisão domiciliar, assim como analisar com maior rigor a imposição de novas segregações corpóreas a fim de conter a disseminação epidemiológica.
De fato, concordamos que a Covid-19 não consiste, do ponto de vista jurídico, causa cogente à revogação de medidas privativas de liberdade, mas, por outro lado, sua incorporação às causas de decidir daqueles que se encontram munidos de sentenciar cidadãos presumidamente inocentes a um cenário fatal não se faz irrelevante.
A questão da entrada do vírus no sistema penitenciário, conforme oficialmente noticiado pela Norma Técnica Conjunta nº 1/2020, de 28 de abril de 2020, do CNJ e do Conselho Nacional do Ministério Público, embora de suspeita de todos nós desde muito antes, resta superada e assim torna-se urgente a adoção dos termos propostos pelo Conselho Nacional de Justiça como medida paliativa à contenção de um holocausto anunciado daqueles que, independente de tempos pandêmicos, estão renegados à própria sorte em condições desumanas e mortais.
E ainda que se busque afastar os termos da Recomendação nº 62/2020, não se pode permitir que argumentos desprovidos de fundamentação, especialmente aqueles originários do Ministério da Justiça, que se fundamentam numa fajuta afirmação de que o sistema carcerário é local adequado para o isolamento, sejam genericamente empregados para essa função.
Em sede de sistema de justiça criminal e de execução penal, a existência do documento assinado pelo CNJ impõe uma exigência à motivação às decisões jurisdicionais, qual seja a superação dos ditames de ordem técnica e humanitária lá dispostas, pois se seu acatamento não é obrigatório, a sua inaplicação sequer pode ser livre de forma a se coadunar com os prenúncios de uma tragédia anunciada – e aqui sequer são necessários esforços futurísticos.
Outrossim, as medidas de urgência vigentes entre nós encontram-se em consonância com a Resolução nº 01, de 10 de abril de 2020, da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em sede da qual se definiram os padrões e recomendações a serem seguidos pelos países integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA), com o intuito de que haja o estabelecimento de uma compatibilidade entre o enfrentamento e prevenção dos efeitos da pandemia dentro dos presídios com o devido respeito ao direito humano fundamental à vida.
Por conta disso, a Comissão apresentou as seguintes recomendações no que se refere às pessoas privadas de liberdade:
I) Reavaliação dos casos de prisão preventiva para substituição por medidas alternativas, especialmente nos grupos mais vulneráveis ao contágio pelo Covid-19;
II) Análise dos pedidos de benefícios carcerários e medidas alternativas à pena de prisão, mormente das pessoas em situação de risco no contexto da pandemia, levando-se em conta as peculiaridades inerentes ao caso concreto;
III) Adequar as condições de detenção quanto à alimentação, saúde, saneamento e medidas de isolamento para impedir o contágio intramuros;
IV) Estabelecer protocolos para garantia da segurança e ordem nas unidades penitenciárias com o intuito de prevenir e combater os atos de violência relacionados à pandemia dentro dos próprios presídios.
Privar, portanto, um ser humano preso, que atenda aos requisitos da Resolução nº. 01/20 da CIDH e à própria Recomendação n° 62/2020 do CNJ, de ser colocado em liberdade criará um passivo imenso da sociedade pelo sacrifício daquelas vidas.
Sob esse prisma de análise, é importante mencionar que, mesmo se não estivéssemos em uma situação de pandemia, o próprio ordenamento jurídico confere ferramentas aptas a justificarem – e, acima de tudo, impor – que essas pessoas sejam colocadas em liberdade.
Entretanto, o punitivismo exacerbado e latente, que ainda assola o Estado, contribui, ainda mais, para o aumento das condições insalubres e tendentes a violar a integridade física, quiçá a própria vida, daqueles que foram indevidamente custodiados ao arrepio dos rígidos critérios autorizadores da segregação cautelar.
Diante da análise de direito comparado, quando analisamos o cenário desenhado na América Latina, é ponderoso destacar que o Brasil deu um passo fundamental ao editar pelo seu Conselho Nacional de Justiça (CNJ), assim como também por intermédio de seu Presidente, a já supramencionada Recomendação n° 62, a qual teve por diretriz estudos científicos e a declaração de pandemia pela Organização Mundial da Saúde — OMS, entre outros ordenamentos, considerando a necessidade de prevenção à infecção e propagação do coronavírus nas prisões.
Essa normativa, inclusive, não deixou de constatar a falência do sistema carcerário brasileiro, pois os estabelecimentos prisionais e socioeducativos, aglomerados de pessoas e insalubres, não permitem a realização de quaisquer procedimentos de higiene e isolamento rápido de forma a cumprir com as recomendações da pasta do Ministério da Saúde e da OMS.
O CNJ, no presente caso, foi ainda além e, em lance de lucidez e vigília, orientou que se evitem novas detenções e que se antecipem saídas em prisão domiciliar para que seja viável a criação de espaços dentro das unidades prisionais para efeito de triagem e separação de suspeitos de contágio.
O valor por trás da recomendação, portanto, é justamente o de que os juízes de todo o Brasil atuem de forma proativa, visando à preservação da vida e da saúde daqueles que tiveram a sua liberdade restringida, reduzindo os fatores de proliferação do vírus e garantindo a continuidade da prestação jurisdicional.
Enfim, quando se bradam discursos na contramão de direitos e garantias fundamentais, notadamente em um momento como o atual, é indubitável afirmar o direito à vida e perseguir, conforme ensinou Goya, o sono da razão, pois desse nascem monstros.
Por isso devemos, de forma altiva, ecoar a racionalidade nesse período de luta entre a razão e o absurdo, entre a ciência e o obscurantismo, entre a vida e a morte. Que Voltaire nos ilumine! E que Goya nos acorde.