Parcialidade na operação ‘Lava Jato’: para além da dissonância acusatória

Por Roberta de Lima e Silva e Victor Ferreira Arichiello

Quem já assistiu a qualquer filme norte-americano, que contasse com ao menos singular cena retratando uma audiência criminal, deve ter notado a “estética” do julgamento: a acusação e a defesa sentam-se em mesas paralelas – no mesmo plano – e de frente para o juiz, que está acima delas.

Também deve ter reparado que o advogado e o promotor entram e saem pela mesma porta na sala de audiências, bem como que a maioria das conversas nos gabinetes dos julgadores contam com representantes de ambas as partes.

Por outro lado, aqueles que já participaram de uma audiência criminal no Brasil, ou assistiram a qualquer documentário que retratasse nossa triste realidade carcerária, certamente perceberam que juízes e promotores sentam-se lado a lado, tal como que o advogado está na mesma mesa em que testemunhas são ouvidas e acusados interrogados, em verdadeiro plano inferior. Isso mesmo com a consagração, no artigo 6º do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94), de que não há hierarquia e subordinação entre advogados, juízes e membros do Ministério Público.

Essa diferença, aparentemente simples, é uma das diversas evidências de que há em terrae brasilis uma inadmissível contiguidade entre o acusador, que é parte, e o julgador que, em teoria, não o é.

Não nos cumpre, neste espaço, explicitar todas as razões que levam a apontar que essa demasiada proximidade entre promotores e magistrados é uma constante no Judiciário brasileiro, mas, ainda assim, destacam-se alguns pontos que ensejam questionamentos até ao mais desavisado observador: a conduta de promotores e juízes que discutem teses antes e depois de audiências, que almoçam e tomam café juntos quase todos os dias, que entram na sala de audiências pela mesma porta privativa, dentre tantos outros fatos facilmente tangíveis na rotina de qualquer Fórum Criminal do país, concorreriam de alguma forma para o desempenho da função constitucionalmente outorgada a esses atores do sistema de Justiça?

A operação “lava jato” nos demonstrou, indubitavelmente, que não.

Através de reportagem de alto impacto publicada pelo The Intercept Brasil[1] no último dia 09, foram apresentadas, ao Brasil e ao mundo, um sem número de mensagens trocadas via Telegram entre o procurador da República Deltan Dallagnol, da força-tarefa da cognominada operação, e o juiz instrutor, hoje ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sergio Moro.

Naturalmente, a divulgação do espúrio conteúdo das mensagens, que revelaram verdadeira unidade de desígnios em interesses avessos ao devido processo legal, e em subversão a qualquer sistema com pretensões democráticas, ensejou reações imediatas por parte dos envolvidos.

E aqui cumpre destacar: nenhuma vírgula a respeito do conteúdo das mensagens, ou até mesmo de sua efetiva troca, restou contestada. Logo, considera-se que as conversas divulgadas são, de fato, legítimas, tendo em vista que tanto o Ministério Público Federal quanto o ministro da Justiça divulgaram notas em que apenas asseveraram o bom trabalho que teria sido feito no combate à corrupção.

As comunicações revelaram, claramente, para além da indecorosa relação entre juiz e membro do parquet, que o responsável por exarar a palavra última na demanda criminal encontrava-se integralmente comprometido com a hipótese da acusação. Não por menos, conferiu diversas orientações ao referido procurador da República, indicando ações que deveriam ser adotadas e, ainda, antecipou decisões que seriam tomadas[2].

Com todos esses fatos revelados, paira dúvida a respeito de dois pontos fundamentais: seria, então, Sergio Moro um juiz parcial? E em assim sendo, deveria a operação “lava jato”, ou pelo menos parte dela, ser anulada? Nos parece que a resposta inafastável para essas duas perguntas é afirmativa.

À vista da contaminação da imparcialidade do julgador, tanto o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (vide Piersack v. Bélgica) quanto a Suprema Corte dos Estados Unidos (vide Offutt v. Estados Unidos), já fizeram a distinção entre imparcialidade objetiva e imparcialidade subjetiva do magistrado, muito bem explicada pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso durante o julgamento do Habeas Corpus nº 94.641[3], ao afirmar que a falta de imparcialidade objetiva

“incapacita, de todo, o magistrado para conhecer e decidir causa que lhe tenha sido submetida, em relação à qual a incontornável predisposição psicológica nascida de profundo contato anterior com as revelações e a força retórica da prova dos fatos o torna concretamente incompatível com a exigência de exercício isento da função jurisdicional. Tal qualidade (…) diz-se objetiva, porque não provém de ausência de vínculos juridicamente importantes entre o juiz e qualquer dos interessados na causa, sejam partes ou não (imparcialidade dita subjetiva), mas porque corresponde à condição de originalidade da cognição que irá o juiz desenvolver na causa, no sentido de que não haja ainda, de modo consciente ou inconsciente, formado nenhuma convicção ou juízo prévio, no mesmo ou em outro processo, sobre os fatos por apurar ou sobre a sorte jurídica da lide por decidir. Como é óbvio, sua perda significa falta da isenção inerente ao exercício legítimo da função jurisdicional”.

Há autores, a exemplo de Aury Lopes Júnior e Gustavo Badaró, que defendem, de maneira mais ou menos direta, que os juízes brasileiros podem, de partida, ser considerados parciais em termos objetivos: ao apreciarem, em fase inquisitorial, pedidos de prisões, de buscas e apreensões, de ações controladas e tantas outras medidas cautelares, ou mesmo ao receberem denúncias, formam pré-convicções, ou pré-conceitos, que possivelmente se repetirão na sentença. Não é incomum notar, em decisões que decretam prisões processuais, a menção expressa dos juízes à convicção de que um crime foi cometido, e que o alvo da medida é o autor do fato.

Gustavo Badaró[4], por exemplo, aponta que:

“O que se defende é que há determinados atos, em especial medidas cautelares pessoais que, por envolverem um mesmo tema a ser analisado na sentença final, e por exigirem para seu deferimento um standard de prova consistente numa probabilidade elevada, por si só, e independentemente da análise concreta da motivação do ato, comprometem a imparcialidade objetiva do julgador, por exigirem uma pré-concepção em grau elevado, que vincula psicologicamente o juiz, que tenderá a decidir no mesmo sentido na sentença final”.

Não existe no Brasil, como acontece no Chile, por exemplo, um juiz de garantias, que analisaria todas essas questões para que o magistrado da instrução não fosse contaminado por pré-conceitos, inevitavelmente formados na fase inquisitorial. Aury Lopes Júnior e Ruiz Ritter, em artigo publicado na ConJur em 29 de julho de 2016[5], aponta que estudos da psicologia social demonstram, em síntese, que a primeira impressão é a que fica: se dissermos as mesmas características de um determinado sujeito para dois grupos de pessoas em ordens diferentes, os apresentarmos e posteriormente questionarmos o que acharam de tal indivíduo, aqueles que ouviram primeiro as características positivas tecerão comentários positivos, e aqueles que ouviram primeiro as características negativas dirão coisas negativas.

Concordamos com as posições de Lopes Jr. e de Badaró, de forma que podemos afirmar que o juiz Sérgio Moro ostenta, de partida, parcialidade de natureza objetiva, sendo notório que deferiu dezenas de pedidos de prisão preventiva e medidas cautelares, bem como homologou numerosos acordos de colaboração premiada. Assim, ao julgar os casos da operação “lava jato” já tinha, mesmo que inconscientemente, juízo prévio conformado pela conformação de nossa estrutura jurisdicional.

Não bastasse isso – e aqui reside a maior gravidade -, o então juiz Moro era, como revelaram as mensagens divulgadas, subjetivamente parcial, esta que, nas palavras de Faustino Cordón Moreno, “trata de apreciar la convicción personal del Juez, lo que pensaba, en su fuero interno en tal ocasión, a fin de excluir a aquel que internamente haya tomado partido previamente, o vaya a basar su decisión em prejuicios indebidamente adquiridos”[6].

Ao dar orientações ao dominus litis, arrebatou o princípio da paridade de armas e, na esteira, sacramentou sua preferência por um dos lados, vinculando-se à acusação ao, precipuamente, relegar seu papel de julgador para se tornar acusador.

Aí então não havia mais julgamento, mas um mero teatro de cartas marcadas, em que julgador e acusação manipularam, ao seu bel prazer, os rumos do processo, instrumentalizando os réus e exterminando qualquer resquício de direito à defesa.

Desta forma, sob a roupagem de paladinos da justiça e irrepreensíveis combatentes das mazelas da corrupção, empreenderam, em verdade, cristalina desconfiança por parte da sociedade na retilínea administração da Justiça.

À vista disso, exsurge única conclusão lógica à imperiosa declaração de nulidade, ainda que parcial, dos casos que contaram com a tendenciosa atuação do magistrado federal e dos procuradores da República integrantes da força-tarefa da operação “lava jato”, consubstanciando as palavras de Eugenio Raul Zaffaroni, “a jurisdição não existe se não for imparcial”[7].

A garantia, outorgada a todo e qualquer cidadão, de ter eventual processo apreciado por juízes e tribunais independentes e imparciais, encontra guarida em diversos diplomas internacionais[8] como a Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), ratificada pelo Brasil e inserida em nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 678/92. Tal integração conferiu à imparcialidade “status superior à normatividade ordinária, sendo também decorrência do devido processo constitucional (art. 5º, LIV, CF)”[9].

Por óbvio, não se está a requerer a utópica neutralidade dos operadores do Direito. O julgador, como não poderia ser diferente, de fato encontra-se “condicionado por las circunstancias ambientales en las que actúa, por sus sentimientos, sus inclinaciones, sus emociones, sus valores éticos-políticos”[10], mas tal neutralidade inexistente não se confunde com a imparcialidade imprescindível a um julgamento justo. Ademais, tratamos aqui da imparcialidade judicial, que tem “como principal finalidade a preservação da cognição do magistrado no processo, para que nenhuma parte seja beneficiada em detrimento da outra”[11], e é justamente a esse valor que se “vincula o sistema acusatório constitucional”[12].

Por conseguinte, o louvável mérito da publicização das mensagens pelo The Intercept Brasil consiste, a nosso sentir, na demonstração material de que a imparcialidade da acusação e do próprio julgador encontrava-se, dentro do cenário fático e processual em relação aos quais as mensagens expostas diziam respeito, eivada por elementos subjetivos alheios ao sistema de garantias constitucionais e convencionais.

Justamente por força do fatal golpe, demonstrado com o rigor exigido, aplicado à imparcialidade, tem-se o completo esvaziamento da validade decorrente dos atos praticados pelos atores de tão arquitetado cenário antiético e, especialmente, anti-democrático, estes que, em seu ato final, restarão aclamados única e tão somente pela declaração de suas nulidades.

[1] Disponível em: <https://theintercept.com/2019/06/09/chat-moro-deltan-telegram-lava-jato/>. Acesso em 11.06.2019, às 11:45.
[2] Disponível em: <https://theintercept.com/2019/06/09/chat-moro-deltan-telegram-lava-jato/#one>. Acesso em 11.06.2019, às 11:52.
[3] STF. 2ª Turma. HC 94.641. Relatora Ministra Ellen Gracie. Relator para o acórdão Ministro Joaquim Barbosa. J. em 11/11/2008. DJe de 06/03/2009. Grifos nossos.
[4] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Direito ao julgamento por juiz imparcial: como assegurar a imparcialidade objetiva no juiz nos sistemas em que não há a função do juiz de garantias. Disponível em<http://badaroadvogados.com.br/ano-2011-direito-ao-julgamento-por-juiz-imparcial-como-assegurar-a-imparcialidade-objetiva-no-juiz-nos-sistemas-em-que-nao-ha-a-funcao-do-juiz-de-garantias.html>. Acesso em 11/06/2019.
[5] LOPES JR., Aury; RITTER, Ruiz. Você sabe o que é efeito primazia no processo penal? Disponível em <https://www.conjur.com.br/2016-jul-29/limite-penal-voce-sabe-efeito-primazia-processo-penal>. Acesso em 10/06/19.
[6] IN: RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal.Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 81.
[7] IN: Op. cit., p. 69.
[8] Vide: Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 10), Declaração Americana dos Direitos Humanos (art. 26.2), Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8.1), Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.1), tal como na Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, de 1950 (art. 6.1).
[9] RITTER, Ruiz. Imparcialidade no Processo Penal.Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 78.
[10] Op. cit., p. 76.
[11] Op. cit.
[12] Op. cit.

Publicado originalmente em: https://www.conjur.com.br/2019-jun-14/opiniao-parcialidade-lava-jato-alem-dissonancia-acusatoria

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