Por Roberta de Lima e Silva
O caso da influencer Mariana Ferrer retomou relevância nas redes sociais, levando à insurgência de advogadas e advogadas, bem como movimentos feministas, com o intuito de reivindicar ações da OAB-SC contra a postura agressiva e incompatível com o exercício advocatício de Claudio Gastão da Rosa Filho [1].
Respeitando o mérito da causa que ainda está em aberto, revestido pelo princípio da presunção de inocência, o presente artigo se dedica à análise de elementos trazidos pela defesa do acusado a fim de desqualificar a vítima por uma simples razão, que passa longe de qualquer tecnicismo jurídico: ser mulher.
O epicentro do inconformismo que se vê ocorreu em audiência de instrução e julgamento, realizada por videoconferência em julho desse ano, em que estavam presentes a vítima Mariana, o defensor público designado para o acompanhamento do ato, o magistrado titular da Vara, dr. Rudson Marcos, isto é, três homens para apreciar um delito sexual.
Até aí, nenhum problema aparente salta aos olhos, mas as aparências podem enganar.
Naquela oportunidade, o advogado do denunciado passou a expor fotos da vítima em campanhas como modelo — afirmando, com ironia, que eram muito bonitas —, dizendo que se tratava de imagens em que Mariana estava “com o dedinho na boquinha” e em “posições ginecológicas”.
Por certo, essa exposição não tinha outro propósito que não questionar a moral sexual da vítima, na clássica máxima de culpabilização e revitimização que todas nós conhecemos.
Outro exemplo cabal desse intuito espúrio deu-se quando o patrono dos bons costumes declarou: “Graças a Deus eu não tenho uma filha do teu nível, graças a Deus, e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher feito você”.
A este termo, a leitora ou o leitor devem estar questionando a posição das demais autoridades masculinas que conformavam a audiência — o magistrado, o promotor de Justiça que assumiu o caso após o oferecimento de denúncia e o defensor Público, nomeado para defesa dos interesses de sua assistida.
— Silêncio.
A violência praticada contra Mariana, somada à toda dificuldade inerente a suportar um processo judicial, levou a ofendida a desabar em lágrimas e implorar “por respeito, nem os acusados são tratados assim, pelo amor de Deus, gente!”
O magistrado que preside o ato, então, interrompe a beligerância do advogado em um dos poucos momentos em que se manifestou.
— Esperanças por medidas drásticas em desfavor do absurdo assistido!
No entanto, o dr. Rudson Marcos apenas avisa a Mariana que ela pode se recompor e tomar um copo com água e, com gentileza, sinaliza que a transmissão pode ser encerrada caso ela não se sinta bem para continuar, sob revelia da manutenção da ordem da audiência.
Mariana continuou firme até o fim da audiência e nós, como espectadoras da barbárie, manifestamos que nossa luta é dolorosa, mas não é solitária.
Bem por isso, é hora de abordar a necessidade de um Processo Penal Feminista, como bem ensina Soraia da Rosa Mendes [2].
A epistemologia feminista dispõe que “o sujeito de conhecimento é considerado como efeito das determinações culturais, inseridos em um campo complexo de relações sociais, sexuais e étnicas. E os critérios da objetividade e neutralidade que supostamente garantem a ‘verdade’ do conhecimento caem por terra, ao serem submetidos ao modo feminista de pensar que assume a dimensão objetiva, emotiva e intuitiva do conhecimento” [3].
Por essa razão, influenciam no contexto dos operadores do Direito e, consequentemente, na síntese da decisão judicial conformam um cenário de razões sociais e culturais em que a construção da “mulher” se apresenta como uma identidade que exsurge “das relações sociais e sexuais, pelas práticas disciplinadoras e pelos discursos/saberes instituintes” [4].
O machismo tende a “institucionalizar o domínio masculino que se estende a toda sociedade” [5]. Veja que Mariana foi brutalmente desrespeitada em ato jurisdicional regido por normas e princípios, sem que houvesse qualquer manifestação dos homens que acompanhavam o pesadelo de uma vítima sendo exposta em suas condutas profissionais em verdadeiro simbolismo de gênero que age como uma “poderosa estereopatia e com uma identificável carga estigmatizante a partir de valores construídos e enraizados estruturalmente” [6].
Em relação ao caso de estupro em particular, crime em questão no caso, “há um evidente reducionismo processual penal que minimiza a violência sofrida pelo modo de operar a partir de construções dogmáticas só na aparência ancoradas no respeito a garantias fundamentais. A consequência disso é uma mulher silenciada à qual cabe a difícil tarefa de demonstrar que não consistiu com o ato e que, embora de subliminar, mas principalmente, sua conduta do agressor”.
Não restam dúvidas que Mariana Ferrer é mais um exemplo das mulheres vítimas de crimes sexuais que são julgadas por sua existência. São esses exemplos que nos concedem certezas sobre necessária disputa de visões e experiências processuais para integrar, cada vez mais, um espaço plural apto a assegurar a concretização de garantias fundamentais.
[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X–JAQShBBw&feature=youtu.be
[2] MENDES, Soraia da Rosa. Processo Penal Feminista. São Paulo: Atlas, 2020.
[3] Op. cit., p. 41.
[4] Op. cit., p. 42.
[5] Op. cit., p. 92.
[6] Op cit., 93.